nova poesia: concreta
Décio Pignatari


o verso: crise. obriga o leitor de manchetes (simultaneidade) a uma atitude postiça. não consegue libertar-se dos liames lógicos da linguagem: ao tentar fazê-lo, discursa adjetivos. não dá mais conta do espaço como condição de uma nova realidade rítmica, utilizando-o apenas como veículo passivo, lombar, e não como elemento relacional de estrutura. antieconômico, não se concentra, não se comunica rapidamente. destruiu-se na dialética da necessidade e do uso históricos. esse é apenas o golpe de misericórdia da consciência crítica: o primeiro já foi dado, de fato, por mallarmé, 60 anos atrás – un coup de dés.

américa do sul
américa do sol
américa do sal
OSWALD DE ANDRADE

uma arte geral da linguagem. propaganda, imprensa, rádio, televisão, cinema. uma arte popular.
a importância do olho na comunicação mais rápida: desde os anúncios luminosos até as histórias em quadrinhos. a necessidade do movimento. a estrutura dinâmica. o ideograma como idéia básica.

esto visibile parlare,
novello a noi perchè qui non si trova.
DANTE, purg., X, 95

contra a poesia de expressão, subjetiva. por uma poesia de criação, objetiva. concreta, substantiva. a idéia dos inventores, de ezra pound.
o livro de ideogramas como um objeto poético, produto industrial de consumação. feito à máquina. a colaboração das artes visuais, artes gráficas, tipográficas. a série dodecafônica (anton webern) e a música eletrônica (boulez, stockhausen). o cinema. pontos de referência.

a rose is a rose is a rose is a rose
GERTRUDE STEIN

com a revolução industrial, a palavra começou a descolar-se do objeto a que se referia, alienou-se, tornou-se objeto qualitativamente diferente, quis ser a palavra flor sem a flor. e desintegrou-se ela mesma, atomizou-se (joyce, cummings). a poesia concreta realiza a síntese crítica, isomórfica: jarro é a palavra jarro e também jarro mesmo enquanto conteúdo, isto é, enquanto objeto designado. a palavra jarro é a coisa da coisa, o jarro do jarro, como la mer dans la mer. isomorfismo.

o elevador subiu aos céus, ao nono andar,
o elevador desce ao subsolo,
termômetro das ambições.
o açúcar sobe.
o café sobe.
os fazendeiros vêm do lar.
MÁRIO DE ANDRADE



a poesia concreta acaba com o símbolo, o mito. com o mistério. o mais lúcido trabalho intelectual para a intuição mais clara. acabar com as alusões. com os formalismos nirvânicos da poesia pura. a beleza ativa, não para a contemplação. para nutrir o impulso, pound. no máximo: ser raro e claro, como disse o último fernando pessoa. criar problemas justos e resolvê-los em termos de linguagem sensível.

o olhouvido ouvê.

tática: joyce, cummings, apollinaire (como visão, não como realização),

morgenstern, kurt schwitters. estratégia: mallarmé, pound

(junto com fenollosa, o ideograma).

parean l’occhiaie anella sanza gemme:
chi nel viso delli uomini legge OMO
ben avrìa quivi conosciuta l’emme.
DANTE, purg., XXIII, 31


o oco dos olhos como anel sem gema:
quem julga ler, no rosto humano, OMO
aqui veria facilmente o eme.


a técnica de manchetes e un coup de dés. calder e un coup de dés. mondrian, a arquitetura, e joão cabral de melo neto. joyce e o cinema. eisenstein e o ideograma. cummings e paul klee. webern e augusto de campos. a psicologia da gestalt.
o pensamento poético é essencialmente figurado. ele nos põe sob os olhos não a essência abstrata dos objetos, mas sua realidade concreta. hegel.

ideograma crítico nacional:

(títulos de livros praia oculta
de poemas publi- claro enigma
cados nos últimos narciso cego
seis anos) a obscura efígie

o poema forma e conteúdo de si mesmo, o poema é.
a idéia-emoção é parte integrante da forma, vice-versa.
ritmo: força relacional.

renunciando à disputa do absoluto, ficamos no campo magnético do relativo perene. a cronomicrometragem do acaso, o controle, a cibernética. a escolha simplesmente humana de uma palavra, ponto-evento.
o fim do claro-escuro, dos botões da sensibilidade apertados na penumbra.
o ideograma regulando-se a si mesmo. feedback. produzindo novas emoções e novo conhecimento.

nádegas de cristal, órrosa . o jargão lírico do pós-guerra. vegetativo, reacionário.
joão cabral não fez outra coisa senão combater, didático, lúcido,

todas as fluidas
flores da pressa;
todas as úmidas
flores do sonho.

fundar uma tradição do rigor. volpi. para que o artista brasileiro não decaia depois dos 40.

a presente exposição: quase didática. transição do verso ao ideograma.



Publicado originalmente na revista ad ­ arquitetura e decoração, número 20, São Paulo, novembro/dezembro de 1956; republicado no "Suplemento Dominical" do Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 5 de maio de 1957.